No início da década de 1980, o Brasil vivia sob a sombra da ditadura e passava por séria crise financeira. Para muitos, qualquer oportunidade que brotasse do chão era lucro. Levando isso ao pé da letra, milhares de homens migraram para Serra Pelada, no Pará, para trabalhar no garimpo, na maior corrida de ouro a céu aberto do mundo, retratada no longa “Serra Pelada”, de Heitor Dhalia que pesquisou várias reportagens da época junto com imagens do (fotógrafo) Sebastião Salgado e recuperou essas memórias para contá-la no formato filme com atores de peso como Wagner Moura (que vive o bandido Lindo Rico), Juliano Cazarré e Júlio Andrade (no filme, são Juliano e Joaquim, amigos de infância com sonhos não muito distantes de levar uma vida de conforto). Juliano não tem família nem nada a perder e logo se revela um homem ambicioso e perigoso. Joaquim, um professor que só quer um melhor futuro para a filha que deixou para trás ainda na barriga da mulher, mas cai na velha armadilha de achar que pode mais, conforme começa a ganhar muito dinheiro. Sophie Charlotte encarna a ex-prostituta Tereza, por quem Juliano se encanta. Para ganhar de vez seu coração, o vilão mata o noivo da mulher, um perigoso coronel interpretado por Matheus Nachtergaele. Mas as coisas não dão muito certo e ela volta à antiga atividade. Esse é o papel de estreia da atriz nos cinemas.
Há algo de muito interessante na veracidade do filme de Hector Dhalia -O Cheiro do Ralo (2006), A Deriva (2009) e 12 Horas (2012)- : a onipresença do Estado, na época, a ditadura militar em seus últimos suspiros, que se fazia presente, ali, nas escavações que transformaram o morro do sudeste do Pará no maior garimpo a céu aberto do mundo, através de duas figuras: uma arrecadadora, com um de seus bancos oficiais, e outra repressora, com Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió – este ausente do filme por decisão de Dhalia e Vera Egito, coroteirista e também sua mulher.
O foco recai sobre a questão humana e suas transformações numa realidade adversa, com a natureza humana sendo posta à prova: Juliano e Joaquim revelarão as suas verdadeiras personalidades ao final dos 120 minutos de projeção. Nesse desenrolar, o filme descortina como o dinheiro pode aflorar o lado selvagem do homem gerando ganância e a obsessão pelo poder. Um desconcerto humano tão gigantesco quanto o próprio ambiente que deles retira o caráter de humanidade. A crônica da dissolução da humanidade em dois amigos, só perde, mesmo, para o magnífico conjunto de fotografias de Sebastião Salgado, feitas no auge do garimpo, como um retrato próximo do que deve ter sido aquilo.
Conhecemos a rica fauna local, com homens que cometeram desvarios como fretar um avião para um prostíbulo, comprar carrões inúteis ou torrar o dinheiro em cachaça inflacionada; as prostitutas e homossexuais que garantem a satisfação sexual dos garimpeiros, mas também provocam disputas mortais; e os traficantes e corruptos que de fato mandam em Serra Pelada, financiando a exploração dos “formigas” (os garimpeiros, numa expressão certeira) e contrabandeando o ouro para conseguir melhores preços. É esse rico painel, inquietante em sua semelhança com uma vasta porção do Brasil atual, que torna o filme tão interessante. Dhalia vai fundo na sua representação da febre do ouro – tão fundo que chega a pôr na tela, de forma literal, o delírio provocado em Joaquim pela malária.
A força do filme reside no elenco: Sophie Charlotte, embora se destaque menos, incendeia a tela com sua beleza, como a prostituta cobiçada por Juliano. Matheus Nachtergaele, como o “capitalista” Carvalho, tem pouco tempo de cena, suficiente para impor a postura sinistra de seu personagem. Wagner Moura está absolutamente fantástico como o corrupto Lindo Rico, uma criação personalíssima, sui generis, de um ator que é sem dúvida alguma o melhor em atividade no Brasil agora. Aterrorizante em sua calma e simpatia que destoam do lugar, rouba cada cena em que aparece – e é talvez a encarnação mais perfeita, entre os tipos que compõem o filme, da insanidade que foi a experiência de Serra Pelada.
A trilha sonora, cheia de clássicos bregas, forma um contraponto irônico às situações violentas, a direção de arte, pelos impressionantes ambientes do garimpo e da cidade próxima (“Trinta, a Las Vegas do Pará”), além dos figurinos de época e da fotografia de Ricardo Della Rosa, com seus tons amarelos e decadentes que resultam em perfeição junto com as imagens de arquivo usadas.
No geral, Serra Pelada é um dos filmes brasileiros mais notáveis de 2013, e um alívio para tantas comédias nacionais medíocres. Dhalia se mostra um estudioso sutil das pulsões psicológicas que movem as pessoas.
por Porão
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