terça-feira, 8 de outubro de 2013

cocozinhos: Nada Levarei Quando Morrer - Miguel Rio Branco


Observações sobre uma arqueologia da violência
por Juliano Gomes

Dirigir-se a um filme como Nada Levarei… em 2013 coloca uma série de problemas “prévios” ao embate com a obra mesma, que dizem respeito a um problema central dela mesma (e também uma questão ontológica), que é sua dinâmica de aparecimento e desaparecimento. A opacidade do seu grupo de personagens e espaços em relação a um regime de imagens do que poderíamos chamar de “pobreza” é de fato seu abismo. Esse buraco, por um lado, suga tudo para dentro do clichê das imagens “humanistas”, no qual tudo parece oscilar entre a denúncia e a solidariedade imobilizante; por outro lado, coloca essas figuras, captadas numa zona de prostituição na antiga Salvador, em um lugar estratégico como discurso. Essa posição diz respeito à rara construção de um universo que se singulariza por justamente se avizinhar das figuras da morte (ruínas, doenças, brigas, cicatrizes, sexo, marcas, as profundas zonas escuras) que vão se insurgir como símbolos de uma outra vida, como uma alteridade radical que se coloca no nível estético (em relação a um regime instituído de “imagens da pobreza”) e político (no que diz respeito a um lugar/função desses corpos, humanos ou não, no espaço da cidade, e na possibilidade de produção de diferença que eles contém). Miguel Rio Branco nos devolve esses corpos e essas pinturas gravados em denso negro como possibilidade de um espelho quase totalmente opaco, que nos devolve a possibilidade de não reconhecimento de nós mesmos.

Um outro pré-texto parece importante, na direção que essa obra possui enorme interseção com o trabalho fotográfico feito pelo artista nesse mesmo momento e que é notadamente um dos momentos altos da história da fotografia brasileira, e possui notável fortuna crítica, cujo intuito aqui não é nem negar nem reafirmar. A hipótese aqui repousa sobre a possibilidade desse filme parecer sintetizar uma espécie de modo, de ética, em relação à imagem que sustenta perguntas que parecem se tornar ainda mais importantes a cada década que passa. O que fazer com essas pessoas? O que fazer com esse “fora”? Esses corpos que parecem só ganhar visibilidade quando justamente se tornam mais transparentes: significando enunciados de misericórdias pré-fabricados, onde as causas, em nome da eficiência, vão lhe furtar um dos seus mais preciosos bens: a opacidade, a possibilidade de reter os raios luminosos. Uma história possível desse trabalho é justamente essa odisseia sobre a opacidade nessas superfícies especialmente acidentadas, crispadas, cheias de cascas, poros, fendas e penas.


O filme é composto por uma série de camadas, nunca em sincronia: imagens estáticas (still), animadas ou não por trucagens; imagens em movimento; e, na banda sonora, canções populares, em suas gravações originais ou cantadas amadoristicamente; ruídos ambientes; pequenas falas, gemidos, grunhidos; e melodias instrumentais entre o fúnebre e o religioso. Essa massa se aglutina num ritmo entre o acúmulo livre e o choque intencional. Num primeiro momento, há uma clara criação desse espaço, dessa linha que liga essas formas variadas: poses, fachadas, peles, tecidos e paredes. Há uma unidade clara neste inventário. Num primeiro segmento, vemos um homem vestido branco, com seu chapéu preto, erguido, quase imóvel, parece absorto, e atrás dele, na entrada de uma casa, uma mulher sentada parece escrever, e uma criança olha para cima. São as primeiras pessoas que o filme nos permite ver um pouco mais de perto (mas não muito), numa composição que parece não querer deixar uma ênfase clara. Há o corpo imóvel no centro, o movimentos nas bordas, as várias cores de fundo marcadas pelo preto profundo que é marca de todo esse universo. A imagem seguinte, uma foto, em zoom out mostra um outro homem de chapéu, em silhueta, carregando muitas frutas sobre sua cabeça. Um corte de continuidade (acentuado pelo movimento no final do plano anterior de uma outra mulher que sai por uma outra porta em segundo plano) sobre uma descontinuidade. Do homem estático, entre o frágil e o altivo, em estado de parada, no centro da imagem, à imagem parada do homem em movimento, com grande peso na cabeça, o que acaba por tecer, pela reiteração desse tipo de operação, um regime de combinação onde a imagem estática não se diferencia da em movimento por uma diferença de natureza. Sua ligação se dá pela exposição de um substrato comum que não diz respeito a uma posição diferente, uma mudança de estatuto ou forma de olhar. O que se trata aqui, de uma forma geral é de descobrir um fundo comum, constituí-lo. A função da imagem estática no filme não é nem a de causar uma ruptura analítica (uma forma de ver com mais calma, perceber detalhes) nem de produzir diferença de registro, mas justamente de indiferenciar os níveis de representação, produzindo ficções e fricções pelo choque de matérias. Cabe notar a recusa do quadro como medida, como referência. A geometria não se coloca como questão na medida em que o que se quer é justamente rever as bases e as medidas destas distâncias, entre a câmera e os corpos, entre o centro e a margem.

O que há para ver são justamente as formas de uma comunidade. Uma comunhão sem identidades e sem sincronias. Nada retorna pela via do específico, do pessoal no sentido identitário. Nada tem nome. As coisas coincidem, se cruzam (e não sincronizam), num nível geral. Todo cruzamento aqui engendra uma espécie de violência fundadora, basal. Pois ela é a base inegável de todo ato criativo e de toda fecundação: é preciso violar, arrebentar as camadas, furar mesmo as superfícies para o novo nascer, para a vida vazar e a luz passar. Cada rosto que irrompe o negro das janelas é essa partícula que viola a densidade do opaco, essa parede de obscuridade através da qual muita coisa não passa. O lugar do olhar aqui é justamente nesta zona de fronteira, neste umbral da passagem entre a treva muda e o êxtase do âmbar, que une as peles, as roupas, as cristas e o ouro. Cada corpo dessa constelação às avessas é uma superfície de gestos moles, instáveis, entre o soco e a dança, atravessando pelo murmúrio que os une.

No plano geral ou no close do rosto, o tempo dos corpos é um tempo de suspensão. O tempo daquelas ruínas só se relaciona com os calendários, na medida em que estes mostram o corpo nu, a corpo a ser desejado. Nada aqui está marcado pelas narrativas do tempo normativo ou do estado assujeitador. O casario colonial em ruínas se expõe em sua nudez interior, mostrando suas entranhas, suas vísceras, que funcionam como nova dobra do seu próprio estilo barroco, não representando tempo histórico nenhum, como uma espécie de futuro de pretérito… um limbo, afinal. Não há antes ou depois aqui. Cada figura está como que colada a seu próprio instante pela sua pregnância como forma. A indistinção entre humano e não-humano não se dá pela diminuição, mas pela aumento do constraste, até que os contornos, o preto, se tornem figuras em si, essas grandes zonas que são afinal os protagonistas aqui. Mais do que separá-las, essa parte obscura indistingüe o começo, a origem de cada elemento, inviabilizando a separação do ser do “aí”, constituindo esse magma de cascas e cicatrizes, quer justamente se constituir como imagem, como figura de potência, como figura de transformação através da manutenção dessa força comum, dessa emergência violenta que muitas vezes nos olha, mas nunca nos pede nada. Sua síntese é justamente esse olhar da prostituta e sua conjugação de tesão, tristeza, resignação e firmeza, numa mistura de medusa e Mona Lisa, atualizando os screen tests de Warhol, um pouco à moda dos zumbis de Pedro Costa, mas lhes adicionando lascívia.

Nada Levarei Qundo Morrer Aqueles que mim Deve Cobrarei no Inferno é, acima de tudo, um “não”. Daí sua força opaca. Quem diz a frase que lhe dá o nome são as paredes. Elas falam. E o esforço é justamente aprender sua língua, respeitá-la, e impor seu código. Daí a busca por uma sintaxe bastante específica na montagem. Não se trata de personagens marginais mas de construir um novo centro, de um expediente de inversão e fundação de um modo, de uma imagem, em outras bases, de um fundo de diferença onde se possa perceber esse, que a sombra funda qualquer imagem. Então chafurdemos no seu excesso, pois dali há de brotar algo, algo há de violá-la. Rio Branco quer construir essa condição de emergência do que nasce da sombra e para isso seu mergulho precisa ser bruto, precisa buscar o primário, o primitivo, no sentido da forma, aquela matéria escondida, tornada invisível pelas narrativas que não podem suportá-la, e que foram seu motor de propulsão. Essa comunidade formada pela exclusão tem na inclusão seu principal método: tudo é aberto e poroso. Janelas, portas, rasgos, fendas, fotos viram movimento, viram folha de calendário, viram divas, demônios, as crianças se misturam ao sexo, se misturam aos bichos, se misturam às paredes, tudo parece afinal se retroalimentar, dobrar-se sobre si. Cada imagem, cada verso de amor perdido, se desdobra nessa teia de ambiguidades que só se deixa ver parcialmente. Um rosto tapado por um pano ou desenhando por cicatrizes, essa é sua cara, e sua cara é sempre só uma parte, pois cada gesto, cada sarna ou sorriso parece a emergência de um força que só se manifesta em condições de instabilidade muito específicas, e que ameaçam qualquer normatização ou código prévio, que pressuponha uniformidade.


Não se trata afinal de dar poder de imagem aos desfavorecidos. Muito pelo contrário, o jogo aqui é justamente questionar, afirmando a linha que se torna explícita na sequência final: a mão doente, queimada, ferida, é a mão do santo, que é do mesmo âmbar do ouro que se dobra sobre si nas paredes da igreja. Esse mundo não é separado, nunca foi, Ele funciona por infiltração. E é esse seu método como discurso construído por Miguel Rio Branco, essa estética do vazamento, não do fluxo, mas de gotejar instável, que jorra, interrompe, salta, que só pode subsistir como diferença pura e negação radical de toda política que lhe negue o direito de calar-se e explodir-se, em vermelho, em vôo, ou sorriso. É uma insurreição, uma volta, o que vemos aqui, um retorno (um pouco como a grande cena síntese de O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, na sequência infinita de garotos pulando a grade), que não cessa, que, a cada obstrução, vai descobrir uma outra forma de emergir, de aparecer e se espalhar, tornando todo o resto – seja concreto, papel, celulóide – mole e ultrapassável. O sorriso da criança que divide o filme em duas metades sintetiza essa força de um discurso que resiste em passividade violenta, numa mistura de sorriso, dor, extravasamento, opacidade e charme: uma força sem nome, de infinito potencial de ambiguidade, uma língua comum dos objetos, de tudo que pode ser violado, tocado. É deixar entrever a incandescência dessa fagulha a marca inescapável de uma gravura densa, vincada, como Nada Levarei Qundo Morrer Aqueles que mim Deve Cobrarei no Inferno.



post originalíssimo:

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