quinta-feira, 21 de novembro de 2013

repasses - À Meia-noite Levarei sua Alma

Por Andre Blak - 
post original: 
http://almanaquevirtual.uol.com.br/ler.php?id=15038&tipo=23&tipo2=almanaque&cot=1
obs: texto adaptado ao tempo e ao espaço por Porão

Imagine-se em 1964, Brasil no início da era militar. Quando o cinema brasileiro vivia a transição dos últimos suspiros das chanchadas para o engajado realismo do Cinema Novo. Do popular para a linguagem refinada. Em São Paulo, uma geração de cineastas discutia como chegar num denominador comum: filmes livres que falassem com o povo. E um dia esse povo acorda e fica sabendo que um longa com o título de À Meia-noite Levarei sua Almaentrou em cartaz. Dirigido, escrito e estrelado por José Mojica Marins, um dos tais paulistas cineastas de guerrilha.

O título apelativo e o horror já seriam suficientes para causar espanto no público médio. Mas a figura de Zé do Caixão é a grande atração desse filme completamente fora dos padrões do que a produção nacional fazia na época. Um coveiro vestido de imagem de terreiro. Uma figura maligna e sanguinária que não acredita em nada e nem respeita ninguém. Um senhor absoluto de si próprio, que vive torturando e humilhando os pobres cidadãos de uma pequena cidade do interior paulista.


O personagem lembra muito os memoráveis pistoleiros de Sergio Leone. Mas Zé não é mercenário. Tenta dosar sua crueldade com a decência. Adora e defende as crianças, mas decepa os dedos de um pobre coitado que fica devendo num jogo (e ainda diz, ironicamente, que arca com as despesas médicas).

Esse Zé do Caixão quer a mulher perfeita e que lhe dê um filho. Joga uma viúva negra em cima da esposa porque ela não engravida ("A mulher que não concebe filhos, não merece cuidados"). Depois mata o melhor amigo para engravidar à força a viúva. Esta se suicida e promete levar a alma de Zé do Caixão como vingança. E Zé responde que irá com prazer se onde for houver mulheres tão belas quanto ela. Um galhofeiro do mal à serviço da crítica religiosa, social e política.

Uma crítica social que se mistura a efeitos simples, inovadores e criativos, onde o gore não fica nada a dever aos melhores filmes de George A. Romero, o papa dos zumbis. O realismo de algumas cenas é sufocante. Já é clássica a citação as viúvas negras reais usadas em cena. Mas vale a pena também destacar os requintes de crueldade nas mortes. Zé do Caixão decepa dedos e fura olhos. Bem poderia ser considerado o avô tupiniquim de tradicionais assassinos slashers como Jason ("Sexta-Feira 13") e Michael Myers ("Halloween").

Mas Zé do Caixão dificilmente provoca risos pelo excesso. Ele nos passa uma certa identificação, como se quisesse fazer do espectador um fiel seguidor seu. Uma espécie de hipnose e pavor. Quase um messias, como mostrou em seu "Finis Hominis", genial alegoria de 1971, sem utilizar o personagem Zé do Caixão.

Todas essas citações a Leone, Romero e slashers mostram o quão complexo e genial foi o trabalho de Mojica. Ele fez tudo anos antes de todos esses. Este é um dos fatores que o credencia como gênio. Seu filme previu muita coisa que seria vista como "banal" no final dos 60 e início dos 70. Tanto na liberdade de expressão dos diálogos quanto na violência das cenas.

Vale ressaltar ainda a influência da infância cinéfila (seu pai era gerente de cinema) e as claras referências a Alfred Hitchcock, Roger Corman e Orson Welles. A liberdade com escassez é capaz de milagres. Dentre os enquadramentos, por exemplo, o crítico Arthur Autran destaca a perspectiva da superioridade de Zé do Caixão sobre os demais personagens, ao passo que o prenúncio de sua derrota passa a enquadrá-lo de forma inferiorizada. 

O sucesso de público levou Mojica a lançar, em 1967, a continuação da saga com "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver", outra brilhante aventura do coveiro maligno, com toques de contracultura num inferno colorido e flower power. 

Voltando a pensar em 1964, À Meia-noite Levarei sua Alma foi certamente o primeiro grande momento e um dos mais importantes filmes da geração Boca do Lixo. Uma geração de cineastas tão bons que um termo apenas para defini-los não foi suficiente. Marginal, udigrudi, cinema de invenção. Tanto faz, o fato é que Mojica e Zé do Caixão foram pioneiros, criando um filme barato, estranho, repulsivo, popular e contestador de todas as morais étnicas, religiosas, sociais, políticas e sexuais. O horror, o sexo, a violência e a revolta. Em formato de cinema e arte.

Ao lado de "A Margem" (1967, Ozualdo Candeias - assistente de direção em À Meia-noite Levarei sua Alma), "Bandido da luz vermelha" (1968, Rogério Sgazerla) e "O Pornógrafo" (1970, João Callegaro), À Meia-noite Levarei sua Alma representa a história do cinema paulista, brasileiro e mundial.

*André Blak é editor dos sites de cinema http://www.blakfilm.com/ e www.udigrudi.com.br


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