Foto: Samuel Esteves |
Política punk rock: entrevista com José Rodrigues Mao (vocal Garotos Podres).
fotos de Samuel Esteves/Daniel Silva/ Eli K. Hayasaka/Divulgação acervo particular Garotos Podres
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Tentei me apegar ao ditado hindu das antigas escrituras Yoga Vasistha, “O Mundo é como você o vê”, na busca por entendimento do mundo maluco ao nosso redor, mas não funcionou. A pós-modernidade cosmopolita turbilhonante e americanófila dinamitou a compreensão da existência de vez para mim em 2013. Para piorar, as ocorrências do universo político deste e do ano passado me confundiram em dobro sobre o Brasil. Em parte porque há informação duvidosa por todo canto. Em parte porque muitas pessoas viraram mini Jornais Nacionais a dispararem lugares comum no Facebook. Adiciona-se à receita os sérios problemas de discernimento quanto aos partidos, uma vez que muitos os confundem com times de futebol ou opções de produtos nas prateleiras do Carrefour.
As únicas certezas que desenvolvi sobre os assuntos cabeludos da política são o estado de cabo de guerra imposto por setores políticos polarizados, sacramentados pela Guerra Fria e amenizados pelo pragmatismo do "Príncipe" de Maquiável, e o diagnóstico de esquizofrenia da mídia nacional ao tentar me manipular com tinturas surrealistas sobre os fatos. Em resumo, a insegurança e as dúvidas sobre o certo e o errado – sobre a verdade em si do que se passa no status quo – me levam a crer que realidade pura é rara. Não há oráculo gabaritado a desvendar as cortinas da distorção social ao alcance da lista telefônica. Mas nada nos impede de procurar.
Foto: Eli K. Hayasaka |
Então, tomei como partida eventos icônicos da política contemporânea para que alguém os interpretasse com sua versão da realidade. O objetivo era jogar perguntas cavernosas de extrema abrangência e profundidade num esquema reverso do encontro com a esfinge que lança mistérios. O escolhido foi José Rodrigues Mao Jr. Injustamente, ele é mais conhecido pelos versos da música Papai Noel Velho Batuta porque foi vocalista da extinta banda punk Garotos Podres por 30 anos. Começou a carreira musical se esgoelando em microfones feito com embalagens de Yakult para um monte de gente desiludida de regiões fabris, com letras sobre comunismo e vômito.
Mas usei um lado menos famoso do personagem para responder às questões. Pouca gente sabe da licenciatura e do bacharelado que Mao tem em História pela USP, onde também fez mestrado de cinco anos em História Econômica, seguido de doutorado no mesmo assunto, o que rendeu um livro sobre a Revolução Cubana. Isto totaliza 18 anos e meio de estudo acadêmico sob ótica comunista. Deu aulas de História da América e História Contemporânea em escolas do ensino médio e na Universidade de Guarulhos. Hoje, na casa dos 50, trabalha em Cubatão, no Instituto Federal de São Paulo, nas disciplinas de Cultura e Civilização Brasileira e Cultura Regional.
foto de Daniel Silva |
Caio Luiz: Qual é a realidade brasileira?
Mao: Putz, essa é difícil de responder em uma pergunta. Para compreender o Brasil é preciso ter uma série de conceitos e conhecimentos que dependem de um processo de escolarização que não existe para todos por aqui. A visão mínima da realidade brasileira deveria ser aprendida no ensino fundamental, mas as pessoas muitas vezes terminam o ensino superior semianalfabetos. O grau de deterioração é tanto que o processo de educação tradicional não forma as pessoas de maneira lógica. Por esse motivo o mesmo cara que acha que bandido tem que ir para cadeia vota no Maluf, detentor de mandado de prisão emitido pela Interpol. Só a incapacidade de raciocinar leva a algo assim. Só um processo revolucionário como o da antiga União Soviética para o Brasil sair desse impasse. Dentro dos mecanismos da democracia burguesa temos só o que é possível no momento: o governo Dilma e Lula.
foto divulgação Garotos Podres |
Caio Luiz: Explique melhor sua visão da educação nacional? Imagino que tenha uma séria de críticas como professor.
Mao: Primeiro: a questão educacional e a da saúde ficam lesionadas porque a verba não chega ao destino. Afinal é desviada na cara dura, de modo extravagante. Segunda coisa: na minha opinião, a elite brasileira tem mentalidade de senhor de escravo porque essa é a sua origem. O país é moldado por três séculos de escravismo. E senhor de escravo não quer educar sua mercadoria porque é perigoso. Vide o caso do Haiti, quando a independência foi liderada por Toussaint Louverture, escravo alfabetizado que leu alguns clássicos do Iluminismo e guiou a expulsão dos franceses do país. Mesmo caso no Brasil, com os Malês, em Salvador. Eram escravos muçulmanos, muitos alfabetizados, que pertenciam à senhores analfabetos no século XIX. A elite brasileira sempre se esforçou no sentido de manter as massas populares distantes da educação. Como existe pressão para que haja estudo, a elite escravista dá escola, dá diploma, mas não conhecimento real porque correriam o risco das pessoas compreenderem Marx, Lenin, etc. A situação de penúria e sucateamento da educação não é por incompetência em gerir o sistema do governo, mas sim pela competência em manter as massas longe da luz do conhecimento.
Caio Luiz: Quem é a elite brasileira?
Mao: É a burguesia dividida em vários setores que detêm os meios de produção. Há o segmento industrial, o agrário, a oligarquia dos estados do nordeste composta por latifundiários ligados ao coronelismo, um setor de agronegócio muito vinculado ao capital internacional - exportador de commodities. A mídia é aparelho ideológico dessa classe. A elite se mantém não apenas pelo exercício da força, mas pela capacidade de construção de hegemonia através do convencimento manipulado por meio da mídia. Avalio a mídia tradicional como a substituta do controle ideológico das massas que foi a igreja no século XVIII, pois determina muito do comportamento social.
Caio Luiz: Como uma pessoa normal pode se situar no panorama atual da política nacional diante do maniqueísmo entre os partidos PSDB e PT.
Mao: 1: Tenho algo claro. Há uma frase de Mao Tsé Tung que ilustra bem a questão do poder. “Todo o poder emana da boca do fuzil.” Ele escreveu isso porque para o proletariado tomar o poder ele precisa de armas. Não há ilusões. Ninguém vai tomar o poder em lugar nenhum do mundo só porque uma eleição foi ganha. Se a classe explorada ganha a eleição e tenta tomar o poder de fato, a elite a derruba com um golpe de estado. Quem manda é quem tem os fuzis, ou seja, a burguesia controla o aparelho repressivo dentro do estado - exército, marinha, polícia militar, etc. Se você quer revolução, você tem que ter fuzil. Não adianta só gritar no meio da rua.
2 – Existe um partido que é o PT. Surgido no final dos anos 1970 e que incorporou vários setores da esquerda: o da igreja católica, o do Partido Comunista Brasileiro (que foi derrotado na luta armada) e grupos trotskistas. Enfim, uma colcha de retalhos ideológica. A trajetória da chapa é determinada por disputas internas dos vários grupos que a compõem. A partir dos anos 1990, o PT optou por tornar-se alternativa política dentro da ordem burguesa. Isso significa vencer a eleição e jogar conforme as regras. Ou seja, se havia grupos dentro do PT que eram revolucionários, eles foram vencidos. Quem personifica bem essa postura é o próprio Zé Dirceu. O resultado desse rumo adotado foi a eleição do Lula e da Dilma. E o mais cômico é que Zé Dirceu foi preso por acatar as regras do jogo. Dirceu poderia ser preso por governo revolucionário, mas nunca por governo burguês. Mesmo porque a prisão dele é um acinte à própria mentalidade burguesa.
3 – Eu classifico o governo do PT como governo democrático burguês. Com todas as virtudes e limitações. O governo Lula e Dilma não é revolucionário porque não tem a porcaria dos fuzis. Então vão fazer o quê? O caráter do governo atual possui tons progressistas, mas não é o governo que eu gostaria. Queria discutir economia planificada, expropriação dos meios de produção, nacionalização da economia, gerenciamento de estado e expropriação da burguesia. Mas a outra alternativa ao PT é o PSDB, representante do que há de mais reacionário no país. Em oito anos no poder sucateou o estado e fez um processo de “privataria” da geração e distribuição de energia elétrica e telefonia. Uma coisa pavorosa que lesou a nação. Se temos problemas sérios nos governos petistas, a outra opção é a barbárie. O PSDB cultua a ditadura e a besta negra do fascismo está encastelada em sua sigla.
Caio Luiz: E os mensalões?
Mao: Mensalões não existem só no Brasil. Pegue o trabalho de Eric Hobsbawm {historiador marxista e britânico, morreu em 2012} sobre o avanço da eleitoralização da política no final do século XIX na Europa. Ele menciona os mecânicos da burguesia para construir as maiorias parlamentares, entre eles a distribuição de cargos lucrativos e dinheiro cantante e sonante. Essa é a prática da democracia burguesa, um de seus mecanismos de funcionamento é a corrupção. Temos que ter em mente que corrupção é instrumento de dominação de classe. Exemplo: sou mero professor. Mal tenho dinheiro para corromper uma guarda de trânsito. Agora, se sou dono de empreiteira, compro logo meia dúzia de senadores ou deputados a baciada. A corrupção beneficia obviamente quem tem poder econômico. No mundo, as maiorias parlamentares foram construídas com os mecanismos do dinheiro ou cargos para parentes. No Brasil é assim desde o império. De repente, a mídia descobriu casos de corrupção do PT e atribui a invenção do sistema de corrupção ao Zé Dirceu. A reeleição do Fernando Henrique foi comprada por meio de subornos, o valor foi de R$ 250 mil por deputado, para votarem a favor do direito dele concorrer a eleição. É uma grande hipocrisia.
Caio Luiz: Quais são as perspectivas de futuro?
Mao: Preciso fazer um adendo para responder a pergunta. Historiador costuma ser péssimo profeta porque está focado no passado. Fazer projeções do futuro é no mínimo uma temeridade. Quem tem bola de cristal não pode levar chute no saco. Eu confesso que padeço de certo otimismo. O Brasil hoje é melhor do que do que há dez anos atrás? Ou em 1993? Com certeza, porque era a ressaca do período Collor. E em 1983, puta que pariu, ainda era a Ditadura Militar em vigor. O salário mínimo do período Fernando Henrique era de US$ 100. O Brasil avançou, bem ou mal. A elite foi obrigada a aceitar um metalúrgico no poder. O problema é que muito mais precisa ser feito e além dos limites da democracia burguesa. Temos uma antiga crise na esquerda que se acentuou no fim dos anos 1990 com o fim do bloco socialista e isso dificulta a via revolucionária.
Caio Luiz: O que você acha do Lobão?
Mao: O Lobão é um cara que estava caindo em merecido esquecimento, mas a mídia tradicional se abre diante de discursos raivosos de direita. Há coisas que ele diz dignas de processo, como a afirmação de que a ditadura só arrancou unhas. Eu classificaria isso como revisionismo. É como negar que houve o holocausto. É como querer apagar um processo terrível da história. Isso significa a possibilidade de retorno. O destino da tortura é ligado ao destino dado ao torturador. Infelizmente, no Brasil, não houve justiça em relação aos militares, ou seja, prender os envolvidos. Nos resta a tarefa de julgar a história das pessoas conectadas à repressão e que apoiaram a Ditadura. O julgamento da história tem que ser implacável. Já que você não pode punir a pessoa, pelo menos execrasse os atos praticados. Se isso não for feito, corremos o risco de passar por novo períodos de censura. Acho perigoso quando ouço de pessoas ligadas ao rock esse tipo de discurso pela influência que podem exercer. Nas redes sociais, há muita gente conhecida endossando a Rota, por exemplo. Muitos se esquecem que a Rota é um organismo policial criado como órgão repressivo para combater a guerrilha. O problema é que opera nos mesmos moldes em meio à sociedade civil até hoje. É importantíssimo desmantelar essas estruturas criadas pela Ditadura.
Caio Luiz: Qual é a verdade sobre as manifestações de junho?
Mao: Nas manifestações de 2013, muitos dos protestantes não tinham filiação partidária. Nos anos 1980 era o PT que mobilizava as massas, mas atualmente o partido se institucionalizou e não cumpre mais esse papel. Nas manifestações de junho, tudo começou com a luta do MPL para baixar a tarifa de transporte e passe livre, mas de repente o movimento ganhou corpo. Houve repressão policial e a mídia apoiou isso, mas percebeu que o movimento não parava de crescer. Quando a mídia e a direita percebeu que a repressão não ia funcionar, elas resolveram controlar as manifestações ao torná-la despartidarizada, o que expulsou os partidos de esquerda como o PSTU. Notei a participação de gente “esquisita” da direita que pretendia direcionar a movimentação para os próprios interesses políticos ao usar a massa como ponta de lança contra o governo petista. É isso, basicamente.
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