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O documentário A Batalha pelo Rio, mostrado na Alemanha, no Canal Arte; em Paris, na Maison de l’Amerique Latine e no Festival de Gramado , circulou e na programação do Canal Brasil, no Festival É Tudo Verdade. Pouca gente por aqui ouviu falar e tampouco viu esse filme do diretor uruguaio radicado na França, Gonzalo Arijón, autor de uma cinebiografia do presidente Lula - A gestão da esperança -, dez anos atrás.
Neste seu filme, o tema é a intervenção das controvertidas Unidades de Policia Pacificadora, as UPPs, nas favelas do Rio de Janeiro e como ela modificou – e continua alterando - o cotidiano das populações do Morro da Babilônia onde o filme começa em uma noite de Natal - o primeiro a ser ocupado; do Morro dos Macacos, uma das favelas mais violentas da cidade; Complexo do Alemão; Quitandinha, em Costa Barros, Jacarezinho, Vigário Geral e a sangrenta Faixa de Gaza onde pontifica a ação inclusiva do Afro Reggae, e do Morro da Providência - primeira favela do Rio e comunidade histórica em que a maioria é de bisnetos de escravos. Lá, eles comentam, nas entrevistas do filme: "Este espaço é a nossa segurança e nossa identidade. Queremos que nossos filhos continuem vivendo aqui".
O filme mostra algumas das casas do alto desse morro marcadas para a demolição. Elas abriram espaço para a construção de um mirante para os turistas que sobem com o teleférico inaugurado há um ano. Os moradores receberam 400 reais de aluguel social e precisaram mudar – é o que lamentam no filme.
Arijón se debruça com o olhar de estrangeiro extasiado pelas belezas naturais da cidade vista do alto das favelas, um ponto de vista generoso, porém arrumadinho, e tenta entender o universo das comunidades pobres cariocas deixadas à própria sorte pelo desprezo do estado, durante décadas, atualmente sofrendo a violência e a truculência policial e uma ambiguidade que os deixa confusos ao conviver com a novidade da invasão dos turistas estrangeiros. “Como chegamos a esse ponto de criminalidade e violência nesses espaços?” indaga um personagem. "Permitiu-se que os favelados se instalassem de qualquer jeito. O estado atendia em baixo e não ocupava os morros".
O diretor uruguaio, detentor do Premio Joris Ivens 2007, um dos mais importantes do cinema documentário, concedido em Amsterdã por A Sociedade da Neve, bem se esforça pela objetividade. Mas confessa: "trata-se de um processo em curso bastante complexo, o de tentar reconquistar um território e deixar o tráfico de drogas em segundo plano". Difícil de explicar o “mosaico socioeconômico e cultural” das comunidades faveladas.
O filme coproduzido pelo Canal Arte, pela francesa Pumpernickel e pelo Canal Brasil, se não chega a ser edulcorado, é ingênuo. Entrevista um coronel antropólogo da Polícia Militar membro da tropa de uma UPP que professa algumas justas teorias acadêmicas infelizmente não aplicadas na truculência policial com a qual os moradores das favelas convivem. Arijón usa, insistentemente, imagens fantásticas tomadas dos altos dos morros que vivem a ameaça, como é mostrado, de se transformarem em cruzeiros e mirantes instalados para desfrute dos turistas à custa das desapropriações de casas e de barracos localizados nessas regiões privilegiadas de onde melhor se descortina a beleza do Rio.
Conversa com traficantes ressocializados que falam sobre o horror de suas existências anteriores, enredados nas garras do crime, em confronto com a paz e mansidão das suas vidas de agora (?) ... São entrevistados e cumprem prisão em regime semiaberto. Mas A batalha pelo Rio ilumina aspectos sobre os quais pouco se fala. O título remete a uma batalha através da parte alta da cidade dos pobres e também da cidade de baixo, a dos ricos? É o combate de resgate de uma cidade inteira?
Por exemplo: a política habilmente chamada de 'pacificação' relacionada à necessidade de mostrar, durante os Jogos Olímpicos de 2016 (e isto começou durante a preparação para a Copa do Mundo de Futebol), um Rio de Janeiro com favelas palatáveis oferecidas como pontos turísticos obrigatórios aos visitantes.
Mas e quando as Olimpíadas acabarem? Pergunta Arijón. "Esta é uma nova política cidadã precursora ou, talvez, seja um plano diabólico para expulsar os moradores dos locais de onde se descortina as mais belas paisagens do mundo?"
“Os impostos chegaram”, diz um morador, no filme. “Pagamos 130 reais para assistir a alguns canais de TV. Antes, pagávamos 25 para ter um gato e víamos tudo que queríamos. Hoje, pagamos eletricidade e a água que não tem. UPP é uma ilusão, aparência. A volta do poder armado (do tráfico) depois da instalação das UPPs é uma realidade". É este o preço da cidadania tão exaltada?
Outro aspecto que o filme procura clarificar aborda o processo de gentrificação no interior das favelas. Os deslocamentos de moradores 'do alto' para mais abaixo, as zonas menos valorizadas. Muitos são ambivalentes em relação a essa 'invasão' da favela pelos da 'cidade' (os que sempre moraram em baixo), como reclamam. Por um lado, o dinheiro circula mais, com novos negócios de serviços que atendem os visitantes. Mas há o receio de estarem presenciando o início de um processo de expulsão. Nesta primeira fase, as reformas urbanísticas atendem turistas. Depois, com a supervalorização dos topos de morros, viria (ou virá?) a especulação imobiliária. “O risco é enorme”, dizem certos entrevistados.
O mosaico é complexo. Alguns moradores acreditam num 'mundo novo' para as favelas. "A idade de ouro do tráfico acabou", comenta-se - embora o tráfico continue, é claro. A maioria é categórica: "A polícia também precisa ser pacificada. Ela tem uma cultura política extremamente violenta".
E o ressentimento germina e é cada vez maior. "Quem acha que o problema está dentro da favela, que a favela seria uma fábrica de marginais não tem noção do que está ocorrendo. Ninguém percebe que a 'pacificação' tem que acontecer também em baixo para erradicar o preconceito e o racismo?"
O teleférico facilitou a vida nas comunidades. Mas seria uma verba melhor aplicada, como expressam os moradores, em um número maior de creches, em escolas bem aparelhadas, em clínicas, hospitais, saneamento básico.
A mais este movimento e encenação de simulacro, no mundo de hoje, aquele mesmo que o francês Baudrillard analisou, vinte anos atrás, um morador da favela da Babilônia conclui: "Só paz não basta". Ele provavelmente nunca ouviu falar de Baudrillard. Mas sabe, na pele, o que está dizendo.
_______
Léa Maria Aarão Reis é carioca e jornalista, autora de 'Novos Velhos - viver e envelhecer bem' (Editora Record).
Neste seu filme, o tema é a intervenção das controvertidas Unidades de Policia Pacificadora, as UPPs, nas favelas do Rio de Janeiro e como ela modificou – e continua alterando - o cotidiano das populações do Morro da Babilônia onde o filme começa em uma noite de Natal - o primeiro a ser ocupado; do Morro dos Macacos, uma das favelas mais violentas da cidade; Complexo do Alemão; Quitandinha, em Costa Barros, Jacarezinho, Vigário Geral e a sangrenta Faixa de Gaza onde pontifica a ação inclusiva do Afro Reggae, e do Morro da Providência - primeira favela do Rio e comunidade histórica em que a maioria é de bisnetos de escravos. Lá, eles comentam, nas entrevistas do filme: "Este espaço é a nossa segurança e nossa identidade. Queremos que nossos filhos continuem vivendo aqui".
O filme mostra algumas das casas do alto desse morro marcadas para a demolição. Elas abriram espaço para a construção de um mirante para os turistas que sobem com o teleférico inaugurado há um ano. Os moradores receberam 400 reais de aluguel social e precisaram mudar – é o que lamentam no filme.
Arijón se debruça com o olhar de estrangeiro extasiado pelas belezas naturais da cidade vista do alto das favelas, um ponto de vista generoso, porém arrumadinho, e tenta entender o universo das comunidades pobres cariocas deixadas à própria sorte pelo desprezo do estado, durante décadas, atualmente sofrendo a violência e a truculência policial e uma ambiguidade que os deixa confusos ao conviver com a novidade da invasão dos turistas estrangeiros. “Como chegamos a esse ponto de criminalidade e violência nesses espaços?” indaga um personagem. "Permitiu-se que os favelados se instalassem de qualquer jeito. O estado atendia em baixo e não ocupava os morros".
O diretor uruguaio, detentor do Premio Joris Ivens 2007, um dos mais importantes do cinema documentário, concedido em Amsterdã por A Sociedade da Neve, bem se esforça pela objetividade. Mas confessa: "trata-se de um processo em curso bastante complexo, o de tentar reconquistar um território e deixar o tráfico de drogas em segundo plano". Difícil de explicar o “mosaico socioeconômico e cultural” das comunidades faveladas.
O filme coproduzido pelo Canal Arte, pela francesa Pumpernickel e pelo Canal Brasil, se não chega a ser edulcorado, é ingênuo. Entrevista um coronel antropólogo da Polícia Militar membro da tropa de uma UPP que professa algumas justas teorias acadêmicas infelizmente não aplicadas na truculência policial com a qual os moradores das favelas convivem. Arijón usa, insistentemente, imagens fantásticas tomadas dos altos dos morros que vivem a ameaça, como é mostrado, de se transformarem em cruzeiros e mirantes instalados para desfrute dos turistas à custa das desapropriações de casas e de barracos localizados nessas regiões privilegiadas de onde melhor se descortina a beleza do Rio.
Conversa com traficantes ressocializados que falam sobre o horror de suas existências anteriores, enredados nas garras do crime, em confronto com a paz e mansidão das suas vidas de agora (?) ... São entrevistados e cumprem prisão em regime semiaberto. Mas A batalha pelo Rio ilumina aspectos sobre os quais pouco se fala. O título remete a uma batalha através da parte alta da cidade dos pobres e também da cidade de baixo, a dos ricos? É o combate de resgate de uma cidade inteira?
Por exemplo: a política habilmente chamada de 'pacificação' relacionada à necessidade de mostrar, durante os Jogos Olímpicos de 2016 (e isto começou durante a preparação para a Copa do Mundo de Futebol), um Rio de Janeiro com favelas palatáveis oferecidas como pontos turísticos obrigatórios aos visitantes.
Mas e quando as Olimpíadas acabarem? Pergunta Arijón. "Esta é uma nova política cidadã precursora ou, talvez, seja um plano diabólico para expulsar os moradores dos locais de onde se descortina as mais belas paisagens do mundo?"
“Os impostos chegaram”, diz um morador, no filme. “Pagamos 130 reais para assistir a alguns canais de TV. Antes, pagávamos 25 para ter um gato e víamos tudo que queríamos. Hoje, pagamos eletricidade e a água que não tem. UPP é uma ilusão, aparência. A volta do poder armado (do tráfico) depois da instalação das UPPs é uma realidade". É este o preço da cidadania tão exaltada?
Outro aspecto que o filme procura clarificar aborda o processo de gentrificação no interior das favelas. Os deslocamentos de moradores 'do alto' para mais abaixo, as zonas menos valorizadas. Muitos são ambivalentes em relação a essa 'invasão' da favela pelos da 'cidade' (os que sempre moraram em baixo), como reclamam. Por um lado, o dinheiro circula mais, com novos negócios de serviços que atendem os visitantes. Mas há o receio de estarem presenciando o início de um processo de expulsão. Nesta primeira fase, as reformas urbanísticas atendem turistas. Depois, com a supervalorização dos topos de morros, viria (ou virá?) a especulação imobiliária. “O risco é enorme”, dizem certos entrevistados.
O mosaico é complexo. Alguns moradores acreditam num 'mundo novo' para as favelas. "A idade de ouro do tráfico acabou", comenta-se - embora o tráfico continue, é claro. A maioria é categórica: "A polícia também precisa ser pacificada. Ela tem uma cultura política extremamente violenta".
E o ressentimento germina e é cada vez maior. "Quem acha que o problema está dentro da favela, que a favela seria uma fábrica de marginais não tem noção do que está ocorrendo. Ninguém percebe que a 'pacificação' tem que acontecer também em baixo para erradicar o preconceito e o racismo?"
O teleférico facilitou a vida nas comunidades. Mas seria uma verba melhor aplicada, como expressam os moradores, em um número maior de creches, em escolas bem aparelhadas, em clínicas, hospitais, saneamento básico.
A mais este movimento e encenação de simulacro, no mundo de hoje, aquele mesmo que o francês Baudrillard analisou, vinte anos atrás, um morador da favela da Babilônia conclui: "Só paz não basta". Ele provavelmente nunca ouviu falar de Baudrillard. Mas sabe, na pele, o que está dizendo.
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Léa Maria Aarão Reis é carioca e jornalista, autora de 'Novos Velhos - viver e envelhecer bem' (Editora Record).
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