O sonho estrangeiro
post original:
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-236807/criticas-adorocinema/
Um homem ao telefone. Ele fala em inglês, mas tem sotaque
brasileiro. A conversa gira em torno de um divórcio e da divisão de
bens. Fala-se sobre Londres, sobre o Brasil. Ele discute valores, fica
irritado, corta a ligação e sai. De certa maneira, esta cena inicial
representa muito bem a estrutura do documentário, que estuda as relações
afetivas e culturais de brasileiros morando no exterior. Eles estão
divididos entre as raízes e o novo país, entre o pertencimento e o
distanciamento. A comunicação com as pessoas ao redor é voluntariamente
truncada, e muitos elementos são apenas sugeridos pela imagem.

Este é o primeiro ponto positivo de
Caminho de Volta. Os diretores
José Joffily e
Pedro Rossi acreditam
na capacidade do espectador em deduzir informações e compreender
relações por si próprio (não se explica como um personagem perdeu a
perna, ou como o casamento do outro fracassou). Nada de letreiros com
nomes de pessoas, cidades. Nada de narradores estabelecendo uma
cronologia, ou de depoimentos diretamente à câmera. A abordagem dos
diretores é direta: observa-se com atenção, interferindo pouco no
ambiente. Quando os personagens modificam seu comportamento em função da
presença da câmera, isso é aceito como fruto do acaso, e incorporado de
modo crítico à narrativa.
A descrição dos dois personagens centrais é respeitosa, mas nunca
condescendente. O fotógrafo André teve muito sucesso em sua carreira
durante mais de duas décadas em Londres, mas hoje enfrenta a crise
econômica e a falta de perspectivas na Europa. Maria do Socorro, mulher
idosa, muda-se para Nova York para viver com o filho solteiro, que já
tem mais de 50 anos, e ainda é tratado de modo infantil. Depois de 24
anos no país, ela ainda não fala inglês, e mesmo o filho enfrenta
dificuldades com a língua. Movido por um perpétuo
American Dream,
ele trabalha como porteiro em um edifício residencial, enquanto batalha
para conquistar a cidadania americana. Depois de tanto tempo, André e
Maria pensam em voltar a um país com o qual talvez não se identifiquem
mais.

A
decepção com o sonho estrangeiro é vista com uma mistura de afetividade
e amargura. A montagem oferece ao espectador citações mais ou menos
diretas à sensação de crise (pessoal ou financeira), sem transformar a
obra em panfleto político. De fato,
Caminho de Volta aposta
na combinação entre beleza plástica e rigor analítico, ou seja, entre a
poesia e a sociologia. Acessível e complexo, ele surpreende pelos
enquadramentos precisos, pela justa duração dos planos, pela montagem
inteligente, que estabelece relações microscópicas e fluidas entre as
histórias. A fotografia é espetacular, como raramente se vê em um
documentário tão aberto ao acaso.
Algumas cenas carregam tamanho significado que parecem boas demais
para serem reais. São aqueles momentos raros de cinema, no qual o
enquadramento ideal, a luz mais expressiva e as ações mais complexas dos
personagens se encontram para gerar um efeito – por falta de outra
palavra – mágico. A discussão entre André e sua esposa, em enquadramento
fixo, consegue ser ao mesmo tempo comovente e deslumbrante do ponto de
vista formal. Maria do Socorro ouvindo “New York, New York” com o filho,
enquanto pergunta “o que o cantor está dizendo” na letra, é outra
pérola. O avião passando ao céu, cruzando os terços ideais do
enquadramento, no momento preciso da cena (a união do pai com seu filho
pequeno), gera um efeito impressionante. Esta é, acima de tudo, uma obra
única, um corpo vivo e orgânico onde todos os elementos são dosados com
maestria.
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