domingo, 27 de setembro de 2015

cine noia - Flamengo Paixão

      

        A trilha sonora mais indicada para a leitura deste artigo é a gravação do Hino do Flamengo, de Lamartine Babo, feita por Jorge Ben na década de setenta. Infelizmente ainda não relançada oficialmente em CD, pode ser encontrada apenas no velho disco em que foi lançada - ou então em versões piratas em CD ou na internet. É uma gravação muito bonita, antológica, feita por Ben na sua melhor fase, com aquele violão numa levada que é suíngue puro.

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David Neves era vascaíno. Flamengo Paixão foi um projeto pensado e produzido por Joaquim Vaz de Carvalho e Carlos Moletta, para ser feito com rapidez antes da produção de Luz del Fuego.

Documentários com futebol, mal ou bem, têm um razoável público em potencial, ainda mais que o Flamengo estava prestes a ser, talvez, tri-campeão carioca, pela terceira vez em sua história - e, além disso, tematizar o clube mais popular do país é, mais do que óbvio, vital. Eles são Flamengo, oras! E como não ser?

Aí aconteceu o seguinte: quando o filme estava sendo feito, o time começou a emplacar na Taça de Ouro - era como se chamava o campeonato brasileiro na época. O filme estava sendo feito com produção independente, pouco dinheiro, mas os produtores resolveram arriscar - foram à Embrafilme e ganharam uma promessa de verba que lhes garantiria continuar as filmagens (promessa que acabou não sendo cumprida), tomaram empréstimos, conseguiram apoios e foram filmando. Torcendo para sair logo uma grana para desafogar o pescoço e torcendo sobretudo para o time ser campeão - isso seria a melhor garantia de uma boa bilheteria. E, de quebra, eles seriam campeões.


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O título parece ter se originado na mais simples sessão de pingue-pongue. Aquela situação em que um analista ou entrevistador cita palavras para que o entrevistado associe a outros conceitos.

Flamengo? Paixão.

De novo: Paixão? Flamengo.

Flamengo Paixão. Paixão. O que é o Flamengo? Paixão.

Exemplifique Paixão: Flamengo. Conceitos gêmeos.


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Documentários tratando de assuntos de futebol, que existem no cinema brasileiro desde os cinejornais que registravam partidas diversas, se tornaram algo comum e natural na época pós-cinema novo, desde que Joaquim Pedro fizera Garrincha, Alegria do Povo (onde, como se disse, não era Garrincha que trazia alegria ao povo, era na verdade a alegria trazida pelo povo que lhe permitia jogar como jogava). Nada mais natural então que David Neves fizesse um filme que ligasse observações do cotidiano dos torcedores com mostras do fascínio que provocava aquela paixão imensa, incompreensível.

O filme não se furta, portanto, a mostrar desde cenas pitorescas como jovens torcedores vestindo a camisa do time, outros entrando no Maracanã, alguns declamando amor eterno (como faz Jards Macalé antes dos letreiros), ou mesmo um casal que sai de baixo do bandeirão que os escondia, no gramado de um parque - nem se nega a mostrar cenas e mais cenas de jogos e gols, às vezes em registros inéditos, às vezes em imagens cedidas por canais de televisão. O filme faz questão de homenagear os grandes ídolos do passado, já esquecidos por novas gerações, mas não se nega a mostrar até com certo suspense as imagens do jogo decisivo. Ao final, todas essas idéias e estes sentimentos parecem se juntar nas imagens finais de torcedores que pagam promessas se arrastando em torno do gramado do Maracanã. Pagando promessas por ter visto o time ser campeão brasileiro.

O dinheiro da Embrafilme não saiu, mas mesmo assim foi possível filmar tudo que tinha que filmar. E o Mengo foi campeão.
E o filme termina por documentar uma geração que acabaria sendo tri-campeã brasileira e campeã mundial, em Tóquio.


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O filme é como o time da época: joga por música. Tem Pixinguinha tocando o "Urubu Malandro", tem Wilson Simonal (numa época em que isso não era considerado fashion), tem um belo tema original do produtor Moletta, tem Moreira da Silva, tem João Nogueira, tem Jacob tocando o choro "Flamengo", tem, é claro, o Hino do Flamengo, de Lamartine Babo. Não é a gravação de Jorge Ben, é pena. É a gravação oficial, clássica, cantada por coro.

Confesso que tenho problemas com o Hino do Flamengo. Não gosto da letra, não gosto nem um pouco. Que história é essa de citar adversário no hino ("Nos Fla-Flus é um ai, Jesus...") ? O Flamengo é grande o bastante para não se preocupar com adversários em seu hino. Mais que isso, como se pode querer imaginar o peso do Flamengo ("Ele é fibra, muita libra/ Já pesou?") ? Que mente delirante pode criar tal letra? E como assim "Eu teria um desgosto profundo/ Se faltasse o Flamengo no mundo" ? Será que o sujeito que escreveu esse hino realmente podia conceber o mundo sem o Flamengo? Eu não consigo, nem creio que alguém que o cante consiga. "Flamengo até morrer"? Como assim, meu amigo, que delírio é esse? A morte não livra ninguém de seus deveres clubísticos! Não fosse assim, por que colocar a bandeira do clube em cima dos caixões, em funerais? Ora, meu chapa, o sujeito morre e continua Flamengo...

Enfim, não quero sair insultando a memória de Lamartine. No estádio, no meio de todos, acho mais do que certo que se cante o hino a plenos pulmões. Mas não vou esconder os fatos - Lamartine, que não gostava de futebol e, na dúvida, torcia para o América (alguém precisa de prova maior de que ele realmente não gostava de futebol?), fez hinos musicalmente fantásticos - embora às vezes adequados para canções de exaltação, como no caso do hino intimista do Fluminense, às vezes tão aparentados com as marchinhas de carnaval que, em caso de serem cantados em momentos em que o time precisa de apoio (como quando precisa reagir depois de levar um gol), criarão uma situação de ridículo incomum - como é o caso do Hino do América, com seus lá-laiá-lá-laiá.

Musicalmente, o Hino do Flamengo é fabuloso, talvez seja o melhor que eu conheça, com aquela introdução magnífica, com aquele tema absolutamente vibrante, vitorioso. Mas a letra é de um sujeito acuado por torcedores (esse tipo de coisa acontece), não a de um apaixonado pelo time.

Mas a gravação do Jorge supera tudo. Pelo suíngue, pela emoção. Pela sinceridade presente quando o cantor diz "Sempre Flamengo eu hei de ser/ Pois é o meu maior prazer / Vê-lo brilhar / Seja na terra / Seja no mar...", esticando e suingando em cada vogal pronunciada.

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Rever o filme para escrever sobre ele é um perigo! Porque, enquanto eu penso num assunto a se comentar, como aconteceu com a letra do Hino, de repente o filme, ao fazer o panorama de todos os grandes jogadores que vestiram o manto sagrado, começa a mostrar os (poucos) grandes craques que nunca o fizeram. Aparece então o depoimento de Nílton Santos, que conta do amistoso que fez jogando com a Camisa, e em seguida vemos fotos de Pelé o fazendo, na ocasião famosa. Mas - aí sim nossa atenção não tem como não se prender - logo o filme trata de relembrar os grandes nomes da história do time. Desde Moderato, passando pelo mitológico Friedenreich, que jogou por um breve período no clube, pelo maior zagueiro da história do país, Domingos da Guia, por gente como Pirilo, Perácio, Dida, Vevé, pelo herói do primeiro tri Valido (cuja história é das mais incríveis) e pelos dois maiores jogadores do Brasil até a era Pelé, Leônidas da Silva (até hoje o brasileiro que fez mais gols em uma só Copa do Mundo) e Zizinho. Quem viu Leônidas ou Zizinho jogarem sempre afirmou que não ficariam em nada a dever ao Rei - pode ser, a memória do futebol vive de mitos, e o próprio Pelé sempre afirmou que o melhor jogador que já viu foi Zizinho, já em fim de carreira no São Paulo.

É então que o filme, enumerando os heróis do clube, chega ao ponto em que pretendia chegar : ao Rei Rubro-Negro, que, naquela época, estava ainda se firmando nacionalmente. Ao apresentar seu personagem, o filme não escapa da observação sociológica simplista. Nas palavras do narrador: "E amanhã, como uma deusa mitológica, esta ilusão se renova em outros nomes, para satisfazer a fantasia dos seus súditos". Vemos então as imagens do Galinho de Quintino, e logo depois alguns dos seus muitos gols. Como não parar para ver e rever?

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Feito por apaixonados pela história do Flamengo, o filme faz questão ainda de lembrar dos ídolos que morreram ainda jovens, como o zagueiro Reyes, como o presidente Gilberto Cardoso, como o polêmico Almir Pernambuquinho. Vemos fotos do célebre gol de Almir na final da Taça Guanabara de 1966, em que, num dia chuvoso, num ataque do Flamengo, o goleiro deixou passar uma bola cruzada e Almir, que tinha mergulhado para cabecear, viu ela ir parando vagarosamente na lama. Não teve dúvidas e foi se arrastando, com a cara na lama, até empurrar a pelota para dentro das redes.
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Depois de mostrar as imagens dos jogos do tri-campeonato (o terceiro) e a festa se espalhando pela cidade, o filme não esconde, ao contrário, exibe ao espectador uma cartela para explicar que naquele ponto acabaria o filme, mas aí entrou a realidade no jogo e "veio a Taça de Ouro"...

Aí, imagens de televisão de gols e mais gols antológicos. Dribles geniais de Júnior e Adílio, lançamentos incríveis de Carpeggiani, chutes certeiros de Nunes. E Zico, fazendo tudo isso e muito mais.
E alguns gols e jogadas incríveis de jogadores que caíram no esquecimento. O gol mais bonito do filme é de Anselmo, o mesmo que, meses mais tarde, entraria quase no fim do jogo decisivo da Libertadores para dar uma cacetada em Mario Soto, jogador do Cobreloa, para descontar as pancadas de três jogos seguidos. O gol do Anselmo é depois de um lançamento que ele recebe na corrida. No que recebe, já dá um drible da vaca no goleiro. Depois, chuta milionésimos antes da chegada do zagueiro, para encobrir o outro que chegava correndo ao gol. Bonito mesmo.

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Na final, o filme já não tinha dinheiro nenhum, só dívidas. Vice-campeão não vai ao cinema rever o time: era tudo ou nada. No primeiro tempo, Nunes, "o tanque da Gávea", mandou um petardo que o hoje deputado João Leite nem teria como segurar: Mengo um a zero. Logo depois, o empate - o Atlético Mineiro seria campeão se arrancasse o empate no Maracanã. No final do primeiro tempo, depois de alguma confusão na entrada da área, Zico teve que se atirar na grama para dar força ao chute na bola que, no repique, estava em péssima posição para o arremate - acertou no ângulo! Com dois a um, o campeonato seria do Mengo. Mas aí, no início do segundo tempo, Reinaldo, que estava contundido e jogou mancando, fez o segundo do Atlético. Para deixar de ser besta, foi expulso do jogo - saiu fazendo o cumprimento dos Panteras Negras, com o punho para o alto. (não foi o primeiro a fazer um gol mancando no Maracanã - Dida já fizera um, décadas antes). De todo jeito, dois a dois era do Atlético.

E assim se passou o segundo tempo, debaixo de muita pressão do Mengo e de muita angústia para a torcida. Se todos os rubro-negros estavam aflitos, se até David Neves, que era vascaíno, torcia por um gol rubro-negro, imagine-se como não estavam Joaquim Vaz e Carlos Moletta...

Aos trinta e oito, trinta e nove do segundo tempo, Nunes recebeu uma bola na esquerda da área e partiu, marcado pelo zagueiro. Parou, encarou o marcador, fez que ia partir para a ponta, que não ia partir para a ponta, partiu. O zagueiro ficou. Meio sem ângulo, o jogador que seria conhecido como o artilheiro das decisões mandou o pontapé. Pobre João Leite. Cinco minutos depois, "fim de papo", como diz o letreiro do Maraca, Mengo campeão brasileiro de 1980. Alegria imensurável de muitos. De quantas pessoas o Flamengo não influencia decisivamente, todos os dias, para o bem e para o mal, o humor, a vida? Nação, força da natureza, seja o que for, merece respeito. É grande.

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Na comemoração, João Nogueira canta "Flamengo joga amanhã/ eu vou para lá / Vai haver mais um baile / No Maracanã // O mais querido / tem Zico, Adílio e Adão/ Eu já rezei pra São Jorge/ Pro Mengo ser campeão...". A canção é de Wilson Batista, se chama Samba Rubro-Negro, e originalmente citava os jogadores Rubens, Dequinha e Pavão.
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Certo, a situação atual. Parece piada de meus editores vascaínos (como David Neves) propor esta pauta agora, quando falar do time significa ter que falar do momento degradante em que anos de administrações incompetentes e mal-intencionadas parecem levar o clube para o abismo.

Sim, a pequenez de certos personagens, em tudo contrastante com a história rubro-negra, parece esconder, estragar, apagar, denegrir tudo que o clube representa. Mas a vida é rio que corre, e neste fluxo tudo pode mudar. O Mengo já teve um presidente mau-caráter que vendeu Zizinho em troca de favores no credenciamento de pontos de venda da loteria federal, assim como todos os clubes brasileiros ainda estão recheados de picaretas e safados, que convivem com uns poucos idealistas e apaixonados - acontecendo mesmo o triste caso de idealistas que acabam se transformando em picaretas e arrivistas.

Mas há algo maior, e nós sabemos disso. Nós somos isso. É a torcida que faz o Flamengo grande, como se pôde ver num dos cada vez mais raros momentos de glória recentes, o do quarto tri-campeonato estadual, vencido com um gol de falta antológico de Petkovic que coroou uma vitória magnífica de três a um sobre o rival Vasco. Neste dia, como nos anos anteriores, percebeu-se que, mesmo por causa de um campeonato desprestigiado como o Carioca, o Rio se torna mais alegre quando veste rubro-negro. Isto não tardará a acontecer novamente. O Flamengo pode parecer estar sendo apequenado - mas, não se enganem, ele é eterno.

 
Para escrever este texto, foi fundamental não apenas a revisão do documentário como também a releitura de um livro-irmão. Se chama Flamengo, Uma Emoção Inesquecível e foi editado pela Relume-Dumará em 1995, com criação e organização de Joaquim Vaz de Carvalho. Ter o mesmo nome que produziu o filme, com o mesmo propósito de documentar - através de depoimentos de torcedores, de 'sofredores' (os torcedores de outros times) e de heróis (os jogadores) - as emoções que traz o Flamengo, já seria motivo para perceber a proximidade dos dois projetos. Mas é no depoimento escrito pelo outro produtor, Carlos Moletta, que a ligação se torna fundamental, pois seu texto, também intitulado Flamengo Paixão, relata justamente a história da complicada feitura do filme.
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Vale lembrar a beleza do último plano do filme, em que o câmera do filme invade o campo para filmar a comemoração de Nunes e dos demais jogadores depois do gol decisivo.
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É preciso dedicar este texto e os leitores sabem a quem. O filme é dedicado a todos que aparecem na tela, principalmente O Torcedor. Entretanto, este texto foi escrito por um sujeito que sempre foi torcedor - e a repetição do gesto, então, seria imprópria. Mas estas mal-traçadas devem ser dedicadas aos heróis do garoto que viu o auge dessa geração documentada no filme. Foi tradição familiar, mas também foram eles que fizeram do menino Flamengo. Então, mesmo que nenhuma palavra dê conta de tal gratidão, é preciso lembrar de nomes como os de Leandro, Raul, Júnior, Cláudio Adão, Adílio, Nunes, Mozer, Tita, Andrade, Júlio César. E o Zico.

São heróis. Abençoados sejam.

Daniel Caetano


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