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O primeiro aspecto que chama a atenção neste documentário italiano é sua gigantesca produção. O filme do diretor Gianfranco Rosi a respeito da ilha de Lampedusa, onde passam diariamente centenas de imigrantes rumo à Europa, é construído com a beleza, o refinamento e o uso de câmeras de um grande projeto fictício em película. A imagem está em todos os lugares: dentro de um bote de resgate quando africanos são salvos no mar, embaixo d’água quando um mergulhador passeia pelas águas, dentro da cabine de um radialista quando ele toca uma música, e ao mesmo tempo na casa de uma senhora idosa que escuta a canção tocada por ele.
Fogo no Mar se destaca igualmente pela urgência do tema, por retratar temas tão sensíveis à Europa atual, e ao mundo inteiro de modo mais amplo. Entre essas questões encontram-se a dificuldade de acolher imigrantes, as guerras civis que afetam países marcados pela desigualdade social e a dívida histórica que os países ricos do norte do globo possuem com as nações pobres do sul, a maioria delas exploradas pelo imperialismo europeu e americano nas décadas passadas.
Ao abordar um tema tão complexo, Rosi faz uma escolha metodológica curiosa, dividindo seu filme em duas partes quase desconexas: de um lado está o retrato dos resgates em alto mar, do outro lado encontra-se o retrato cotidiano da vida em Lampedusa. A ilha é representada de modo metonímico: o cineasta foca-se numa única família de pescadores, mais especificamente no garoto Samuele, que perambula pelo local tentando criar o estilingue perfeito e matar os passarinhos mais difíceis. Vemos um pouco do pai e da avó, mas o foco são as falas do menino, seu problema de visão, seu imaginário lúdico da guerra. O cineasta acredita que neste personagem teimoso reside a força de todos os habitantes da ilha italiana.
Com os africanos, no entanto, Rosi efetua o caminho contrário, decidindo não se focar em ninguém em especial. O diretor mostra os refugiados políticos como uma massa indistinta de homens e mulheres negros, que não conversam com a câmera, nem uns com os outros. Evoca-se a presença de um tradutor de línguas africanas que deve chegar a qualquer instante, mas este personagem não aparece em cena. Com exceção de um ou dois africanos capazes de se comunicar em inglês, as vítimas deste processo não têm voz, não se tornam figuras ativas no discurso do filme. O maior incômodo diante de Fogo no Mar é perceber que o cineasta não está interessado nas histórias individuais dos viajantes, em seus nomes, suas dores, suas personalidades. Ele deseja apenas apreender suas imagens.
Esse fator é agravado pela estética adotada. Com uma fotografia rebuscadíssima, Rosi cria ambientes claros e bem iluminados em Lampedusa, mas prefere ocultar os detalhes dos rostos negros dos imigrantes. Numa cena noturna de futebol, quando os homens defendem seus países num campeonato improvisado, a fotografia prefere iluminar o cenário atrás dos jogadores, transformando os homens em meras sombras negras. O diretor só se aproxima do rosto dos refugiados duas vezes, por razões claramente estéticas: num momento, um homem com uma ferida no olho chora lágrimas de sangue, no outro, uma mulher joga água no rosto e passa a brilhar lindamente ao pôr do sol. Esta é uma beleza tão flagrante quanto antiética, porque se sobrepõe ao humano ao invés de valorizá-lo.
Assim, o documentário deve despertar as mesmas discussões suscitadas pelas fotografias de Sebastião Salgado, ou pelas imagens de Cidade de Deus, a respeito da glamorização da beleza. Se tivesse sido lançado quinze anos atrás, Fogo no Mar teria integrado o debate acalorado sobre a “cosmética da fome” – algo pertinente neste filme em que humanos são comparados a peixes, puxados de um barco precário e empilhados num bote salva-vidas, uns em cima dos outros, em silêncio, quase inconscientes. Rosi sabe compor imagens muito bem, e encontra-se na hora certa, nos locais certos. Mas o cineasta não vai além da constatação, trocando a reflexão política pela apreciação estética.
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